Caso Adrielly: descaso médico que mata tanto quanto a bala perdida

adãoAdão Orlando Crespo Gonçalves. Esse é o nome do médico neurocirurgião que faltou ao plantão noturno no Hospital Salgado Filho na véspera do Natal. Não era a primeira vez. Mas na noite do dia 24, uma tragédia que resultou em morte por omissão iria tirar o seu nome do anonimato e colocá-lo nos holofotes da imprensa nacional.


3cNo subúrbio do Rio, Adrielly dos Santos Vieira, uma menina de dez anos, acabava de receber uma boneca, seu presente de Natal. Mal abriu a embalagem e caiu no chão. Fora atingida na cabeça por uma bala, atirada por traficantes em meio aos fogos de artifício, um desses costumes estranhos que nós temos de celebrar.
Ao dar entrada no hospital, a surpresa (surpresa?): não tinha neurocirurgião de plantão. A família entra em desespero, mas na sua impotência e sem meios de agir, espera oito horas. A menina é levada para o Souza Aguiar, mas é tarde demais. Tem morte cerebral. Está morta aos 10 anos de idade. Poderia ter uma chance, mas a demora foi grande demais. Imaginem que noite de Natal deve ter sido pra essa família, com uma criança baleada, sem atendimento, sem solução, sem esperança. Nunca mais o Natal vai ser o mesmo para essas pessoas.
Agora imaginem o Natal na casa do doutor Crespo Gonçalves. A família reunida – ele, inclusive – muita comida, bebida de todos os gêneros, abraços, conversas, alegrias... Não era a primeira vez que ele faltava a um plantão, coisa boba esse negócio de neurocirurgião de plantão, ninguém liga se não tiver nenhum... Melhor estar reunido com a família não é?
É claro que o médico Adão Orlando Crespo Gonçalves é um dos responsáveis diretos pela morte da menina, mas esse episódio trágico tem como pano de fundo uma série de outros fatores que indiretamente contribuíram para o desfecho negativo.
  1. Incapacidade do Estado de dar conta da violência urbana: entra ano, sai ano, e a violência é uma chaga que está sempre entre nós. Especialmente nas comunidades carentes, onde a disputa do tráfico, a polícia, a milícia, transformam a vida dos cidadãos numa roleta russa. Antigamente dizia-se que as pessoas saíam de casa e não sabiam se voltavam. Agora nem dentro de casa é possível estar seguro. A bala te encontra ali mesmo.
  2. Descaso com a Saúde Pública: quem vê o episódio da morte de Adrielly dos Santos pensa que esse é um caso isolado, mas infelizmente o abandono dos hospitais públicos é uma realidade deprimente e antiga. Quem nunca precisou ir no Hospital Estadual Albert Schweitzer, em Realengo não sabe o que é o inferno na Terra. Um prédio inteiro praticamente desativado, aparelhos velhos, lotação, confusão, falta de remédios... A coisa não é diferente nos outros hospitais da cidade.
  3. Desumanidade dos profissionais da saúde: tudo bem, o quadro não é dos melhores, mas o que dizer do fator humano, aquele profissional que deveria ajudar nos momentos que as pessoas mais precisam, de alguma maneira? A falta de condições de trabalho está desumanizando os médicos, que estão cada vez mais insensíveis ao drama das pessoas. Neste mesmo hospital, anos atrás meu pai pediu “um minuto” para tirar uma dúvida com um médico, no que este devolveu: “nem um segundo!”; eu cheguei com ombro deslocado uma vez e fui barrado na porta, por falta de ortopedista (depois fiquei sabendo que eles estavam todos lá à toa) e minha irmã com o dedo do pé quebrado, foi mandada de volta pra casa, porque segundo lhe disseram, “ali só entra baleado ou com fratura exposta”. Pelo menos a Adrielly teria alguma chance nesse hospital...
Mais uma vez uma família teve que pagar o preço do abandono e do descaso das autoridades públicas com a Segurança e a Saúde e sofrer com a insensibilidade de um profissional que não tem caráter nem honra para ser médico. Nem o abandono da Saúde Pública, nem a violência, nem outra coisa qualquer justificam a ausência desse médico na sua hora de trabalho. Durante dois anos, esse doutor fez dezenas de pacientes graves voltarem pra casa por falta de neurocirurgião, enquanto seu superior, o chefe do plantão do Hospital Salgado Filho, o médico Ênio Eduardo Lima Lopes, nem sequer o conhecia pessoalmente. Passou impune esse tempo todo, mas dessa vez deu “azar”: uma criança morreu por falta de atendimento. Esperamos agora que a alta estirpe desse cidadão e o corporativismo médico não o impeçam de pagar pelo seu descaso na Justiça e perante seus colegas. Pelo menos, esse caso pode ser um divisor de águas no comportamento de alguns médicos nesse país.




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