Desvendando o segredo da desigualdade social brasileira

ricos-e-pobres-no-brasilUma das qualidades mais decisivas do livro do professor Jessé Souza, A Ralé Brasileira – Quem é e como vive, o qual estamos resenhando nas últimas postagens, sem dúvida é o esclarecimento de como a hegemonia do economicismo serve ao encobrimento dos conflitos sociais mais profundos e fundamentais da sociedade brasileira, como toda visão superficial e conservadora do mundo. Nessa postagem vamos discutir os mecanismos ocultos e a reprodução das desigualdades sociais analisadas pelo autor, que permitem a perpetuação de um dos mais graves problemas brasileiros, que é justamente esse abismo colossal entre ricos e pobres.

Na crença fundamental da visão economicista de mundo, segundo o autor Jessé Souza,

O marginalizado social é percebido como se fosse alguém com as mesmas capacidades e disposições de comportamento do indivíduo da classe média. Por conta disso, o miserável e sua miséria são sempre percebidos como contingentes e fortuitos, um mero acaso do destino, sendo sua situação de absoluta privação facilmente reversível, bastando pra isso uma ajuda passageira e tópica do Estado para que ele possa “andar com as próprias pernas”. Essa é a lógica, por exemplo, de todas as políticas assistenciais entre nós.

O professor critica no livro teorias sociais tanto liberais quanto marxistas – apesar de se utilizar bastante de conceitos do marxismo, como luta de classes, ideologia dominante, etc. – por darem um peso muito grande aos pressupostos econômicos da desigualdade, enquanto se esquecem de analisar as causas não materiais da pobreza – e  essa é sem dúvida uma das maiores contribuições de todo o livro, conforme veremos.  Como consequência, o “esquecimento” dos fatores não econômicos da desigualdade, na verdade, serve ao encobrimento dos conflitos sociais que estão no âmago da “divisão de classes” no Brasil.

A questão-chave: a herança imaterial como fonte da desigualdade

Normalmente, apenas a herança material, pensada em termos econômicos de transferência de propriedade e dinheiro, é percebida como característica determinante para o indivíduo ser considerado membro de determinada classe social. A grande sacada do autor é mostrar como essa visão economicista oculta a verdadeira raiz da desigualdade social brasileira. Ao enxergar somente bens e valores como base da desigualdade, deixa-se de perceber o mais importante: a transferência de valores imateriais na reprodução das classes sociais e de seus privilégios no tempo.

Leia mais: Como se perpetuam os mitos da sociedade brasileira

Na página 19 do livro o autor já deixa bem claro como a cegueira da percepção economicista trabalha para que não percebamos que…

…mesmo nas classes altas, que monopolizam o poder econômico, os filhos só terão a mesma vida privilegiada dos pais se herdarem também o “estilo de vida”, a “naturalidade” para se comportar em reuniões sociais, o que é aprendido desde a tenra idade na própria casa com amigos e visitas dos pais. (…) Algum capital cultural também é necessário, (…) ainda que esse capital cultural seja, muito frequentemente, mero adorno e culto das aparências, significando o conhecimento de vinhos, roupas, locais “in” em cidades “charmosas” da Europa ou dos Estados Unidos, etc. É a herança imaterial, mesmo nesses casos de frações de classes em que a riqueza material é o fundamento de todo o privilégio, na verdade, que vai permitir casamentos vantajosos, amizades duradouras e acesso a relações sociais privilegiadas que irão permitir a reprodução ampliada do próprio capital material [grifo meu].

A classe média opera de maneira diferente. Ao contrário da classe alta, ela se reproduz pela transmissão afetiva, ainda que de forma quase inconsciente, das precondições que irão permitir aos filhos dessa classe competir, com chances de muito sucesso, na aquisição e reprodução de capital cultural.

O filho ou filha da classe média se acostuma, desde a tenra idade, a ver o pai lendo o jornal, a mãe lendo um romance, o tio falando inglês fluente, o irmão mais velho que ensina os segredos do computador brincando com jogos. O processo de identificação afetiva – imitar aquilo ou quem se ama – se dá de modo “natural” e “pré-reflexivo”, sem a mediação da consciência, como quem respira ou anda, e é isso que o torna tanto invisível quanto extremamente eficaz como legitimação do privilégio. Apesar de “invisível”, esse processo de identificação emocional e afetiva já envolve uma extraordinária vantagem na competição social seja na escola, seja no mercado de trabalho em relação às classes desfavorecidas. Afinal tanto a escola quanto o mercado de trabalho irão pressupor a “in-corporação” (tornar “corpo”, ou seja, natural e automático) das mesmas disposições para o aprendizado e para a concentração e disciplina que são “aprendidas” pelos filhos dessas classes privilegiadas, sem esforço e por mera identificação afetiva com os pais e seu círculo social.

O capital cultural, sob a forma de conhecimento técnico e escolar, é a circunstância que permite às classes médias ter um papel dominante na sociedade. A classe alta se caracteriza, por sua vez, pela apropriação, em grande parte pela herança de sangue, do capital econômico, ainda que alguma porção de capital cultural esteja sempre presente.

Veja também: O economicismo e suas consequências para a desigualdade social

Agora podemos começar a entender coisas como o “fracasso”, a repetência e o abandono escolar de uma enorme parcela de crianças das classes mais pobres, bem como de um contingente enorme de pessoas que não conseguem colocação no mercado de trabalho, não obstante a grande oferta de vagas nesses tempos de crescimento brasileiro, como algo muito mais complexo do que as explicações simplistas que apontam mera culpa individual. O processo histórico de modernização do Brasil produziu não apenas as classes que se apropriam dos capitais culturais e econômicos. Ele constituiu também “uma classe inteira de indivíduos, não só sem capital cultural nem econômico em qualquer medida significativa, mas desprovida, esse é o aspecto fundamental, das precondições fundamentais, morais e culturais que permitem essa apropriação. Essa é a classe que o autor chama no livro de “ralé”, segundo ele, de forma provocativa.

Chamar a atenção para esses detalhes não econômicos que passam batidos pelas análises economicistas dos especialistas é, eu repito, o maior mérito do livro do professor Jessé Souza, porque nos permite compreender o fosso da desigualdade econômica entre as classes sociais não como a causa da desigualdade em si, mas como consequência de uma condição de vida onde milhões de pessoas vivem sem acesso aos meios essenciais para poderem sair de sua condição precária. É por isso que a tão decantada ascensão social de milhões de miseráveis através do assistencialismo governamental será somente uma ascensão econômica artificial, porque não oferece verdadeiros meios para que os mais pobres possam definitivamente sair da sua condição de miséria material.

o maior recado que se pode deixar é tentar enxergar os problemas brasileiros menos sob a ótica econômica, para procurarmos entender as causas estruturais da histórica chaga da desigualdade social brasileira.





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